Em 2018 tornou-se oficial o ciclo de indignação diária que aparentemente será a rotina das redes sociais durante alguns anos. A despeito do fato incontestável de que as pessoas fazem merda diariamente, a proporção da indignação virtual é que alcançou níveis mais altos que o comum, transformando alguns problemas, por vezes até banais, em "notícias" com destaque em portais de alcance nacional.
Um desses episódios envolveu a remoção de uma música do Spotify após a revolta de muita gente nas redes sociais. Aqui, o título de uma notícia publicada na época:
Clica na imagem pra ler a notícia toda, amigo leitor. |
A obra em questão, Só Surubinha de Leve, do MC Diguinho cujos versos "taca bebida depois taca pika e abandona na rua" certamente não entrarão pra história da música popular brasileira, foi acusada naquela ocasião de fazer apologia ao crime de estupro.
Problemão, né? Pro autor da música e pra quem a publicou, sim - imagino que deva ter rendido problemas com processos e perda de receita - Agora, pra você, pra mim ou qualquer pessoa que decida ouvir ou não essa faixa, talvez tenha sido nada demais.
"Mas a música defende claramente o comportamento abusivo com mulheres!". Defende? Por via das dúvidas, façamos como sugere o mestre Manfredini Jr. em Só Por Hoje: vamos com calma.
Observe essa organizada e bem implementada tabela comparativa:
Só Surubinha de Leve - MC Diguinho | Conversa de Assassino Serial - Matanza |
Pode vim sem dinheiro Mais traz uma piranha Pode vim sem dinheiro Mais traz uma piranha Brota e convoca as puta Brota e convoca as puta Mais tarde tem fervo Hoje vai rolar suruba Só surubinha de leve Surubinha de leve com essas filha da puta Taca bebida depois taca pika E abandona na rua |
Precisa arrumar um novo culpado Se tudo acabar dando errado Precisa de um novo suspeito Porque foi bem longe de um crime prefeito Fez bem em tê-la enterrado Pena que foi descuidado Deixou na pá impressões digitais Porque ninguém mais acredita Que foi só um crime comum Mesmo que a investigação não saiba onde procurar Eu já vi mais de um repórter andando pelo local Já começaram a publicar que é um assassino serial |
Duas obras, dois gêneros distintos e um elemento em comum: descrevem crimes. E caso o querido leitor nunca tinha reparado nas letras do Matanza anteriormente, talvez não tenha prestado atenção em muita discografia de bandas pesadas. Várias são as composições em que o personagem da letra está em posição oposta à lei, como no seguinte verso:
"Finished with my woman 'cause she coudn't help me with my mind" - Paranoid (1970)
No primeiro verso de Paranoid, Ozzy Osbourne canta como deu um fim à sua esposa por não ter ajuda alguma dela pra seus problemas de paranoia. Isso não quer dizer, no entanto, que Ozzy e o Black Sabbath sejam criminosos. Não que não tenham sido pegos em situações ilegais, mas compor letra de música ainda não configura crime. Por mais abjeta que uma letra possa ser, o famoso crime de apologia ao crime segundo o Art. 287 do código penal brasileiro, só ocorre na hipótese de alguém "Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime.". O Art. 286, anterior a ele é o que tipifica a incitação ao crime, e esse fato ocorrerá quando alguém "Incitar, publicamente, a prática de crime". Então, a incitação precisa estimular alguém a cometer crime e a apologia precisa elogiar um crime já cometido ou seu autor.
Caso fossemos decidir - e isso é um exercício hipotético, qualquer julgamento é responsabilidade do poder judiciário - se um autor de música cometeu qualquer um desses crimes contra a ordem pública, precisaríamos provar que um crime foi cometido antes e a canção celebra isso, ou depois, motivado pela obra. Complicado, não?
Pesquisando pra esse artigo, encontrei um texto excelente do Tassio Denker sobre os limites entre Liberdade de Expressão e apologia em que ele explicita o borrão que é a área cinza entre liberdade de expressão e crime, ressaltando que nenhuma liberdade é absoluta. Em se tratando de música ou qualquer obra artística, figuras de linguagem se aplicam, tornando praticamente impossível atribuir qualquer crime a uma obra. Claro, toda regra tem exceção.
Muito anterior a esse fato, em 1985 a música pesada foi alvo de grupos preocupados com a influência que ela exerceria nos jovens. O Parents Music Resource Center, foi um comitê formado nos Estados Unidos para aumentar o controle sobre músicas que, segundo eles, tratavam de violência, sexo e drogas. O comitê deu origem ao famoso selo que avisa os pais sobre o conteúdo das músicas, bastante comum nos álbuns de hard rock e heavy metal, não antes da líder do comitê, Tipper Gore, ouvir a leitura de uma carta maravilhosa redigida pelo lendário Dee Snider, vocalista do Twisted Sisters à época. Ela podia ter ido dormir sem essa.
É preciso estar atento a casos como esses para poder distinguir a legítima aplicação das leis, das tentativas de cerceamento de liberdades e direitos garantidos, e de censura, pra que não voltemos ao tempo em que músicas precisavam de autorização antes de serem publicadas.
Pra mim, ficam duas conclusões: Casos de crimes reais são bem mais relevantes pra sociedade do que um caso de criação de obra ~artística~ e arte ruim é só arte ruim.
Ironia: esse selo praticamente atesta a qualidade de um álbum de heavy metal. |
Muito anterior a esse fato, em 1985 a música pesada foi alvo de grupos preocupados com a influência que ela exerceria nos jovens. O Parents Music Resource Center, foi um comitê formado nos Estados Unidos para aumentar o controle sobre músicas que, segundo eles, tratavam de violência, sexo e drogas. O comitê deu origem ao famoso selo que avisa os pais sobre o conteúdo das músicas, bastante comum nos álbuns de hard rock e heavy metal, não antes da líder do comitê, Tipper Gore, ouvir a leitura de uma carta maravilhosa redigida pelo lendário Dee Snider, vocalista do Twisted Sisters à época. Ela podia ter ido dormir sem essa.
É preciso estar atento a casos como esses para poder distinguir a legítima aplicação das leis, das tentativas de cerceamento de liberdades e direitos garantidos, e de censura, pra que não voltemos ao tempo em que músicas precisavam de autorização antes de serem publicadas.
Ainda bem que os censores do governo eram meio lentinhos. |
Pra mim, ficam duas conclusões: Casos de crimes reais são bem mais relevantes pra sociedade do que um caso de criação de obra ~artística~ e arte ruim é só arte ruim.
Mais textos:
- https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/musica/musicos-sao-condenados-por-incitacao-de-crimes-e-preconceito-religioso-1kcglwtay6edjurkot37vnl36/
- http://www.lumosjuridico.com.br/2018/01/24/afinal-e-somente-uma-surubinha-de-leve/
- https://oglobo.globo.com/cultura/musica/especialistas-dizem-que-so-surubinha-de-leve-nao-configura-apologia-ao-estupro-22299705
- https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaoaudiencia?id=11884
Conhece mais exemplos de canções que descrevem crime nas letras? Escreva nos comentários!