Análise: Barão Vermelho Viva

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Viva, 2019



2017. Mais de 30 anos após a saída do seu vocalista original - ninguém menos que Agenor de Miranda Araújo Neto, A.K.A. Cazuza - o lendário Barão Vermelho sofre sua segunda grande baixa nos vocais quando Roberto Frejat decide seguir com sua carreira solo.

Mauricio Barros, tecladista que havia participado do especial de Rock Brasil patrocinado por uma marca de cosméticos, sugere à banda que contratasse Rodrigo Suricato, músico que segurou a responsabilidade de tocar com Dado Vila-Lobos (Legião Urbana), Liminha (Mutantes), Paula Toller (Kid Abelha), João Barone (Paralamas do Sucesso) e Nando Reis (Titãs/Solo) naquela noite. O resultado é o álbum Viva, com nove faixas inéditas e que é um absoluto retorno aos ares para o Barão.

A primeira coisa que me chamou a atenção quando meu irmão colocou o disco pra tocar foi "Caramba, é a cara do Barão Vermelho!". Pode parecer bobo e óbvio mas todo fã de música sabe como a troca da voz numa banda é traumática, principalmente porque esse tipo de substituição pode significar novos rumos na sonoridade dos trabalhos futuros - vide o iceberg que atingiu o Rainbow quando Ronnie Dio foi pro Black Sabbath - para bem ou para mal. No caso do Barão/Frejat, eu que era absolutamente cético, só pude dar o braço a torcer porque não apenas as faixas do album são excelentes, mas Suricato ocupa a frente da banda como se aquele posto nunca tivesse pertencido a uma lenda do rock pra mostrar serviço com competência e personalidade.

Das nove faixas, pelo menos quatro tocam em temas como separação, amizade, relacionamento e auto-afirmação como "Tudo por nós 2" que diz em seus versos:

"Ei, se liga aí
Eu ainda não morri
Eu tô aqui
(...)
Todo esse barulho
É pra nos confundir
Nada vai nos dividir (...)"
Algumas faixas deixam a impressão de que são indiretas ao novo ex-membro da banda, mas não passa disso, não só as faixas funcionam muito bem fora do contexto da recente separação mas os próprios membros já trataram de declarar como a relação com Frejat foi encerrada profissionalmente, e apenas isso.

Viva abre com "Eu Nunca Estou Só", uma faixa que demonstra como a música negra americana está no DNA do Barão. Um lick no violão construído sobre a pentatônica dá o tom de Blues para o início e uma estrofe em estilo Rap fecha a canção e ao mesmo tempo, o ciclo do legado negro na música. Confesso que ainda não me acostumei com essa faixa e apesar da temática coerente não apenas nela própria, mas com todo o tema de ciclo/renascimento do álbum, ainda é a que mais me causa estranheza. É, eu não sou fã de hip-hop...

Daqui pra frente, todas as faixas têm qualidade de Lado A e apenas a última, "Pra Não Te Perder", tem cara de fim de festa, o que nem é demérito. "Por Onde Eu For", "Jeito", "Um Dia Igual ao Outro", "A Solidão Te Engole Vivo". Cada uma das faixas tem cara de hit de rádio (daquele tempo quando rádio era bom) e das que menos se encaixam nesse formato, "Um Dia Igual Ao Outro", poderia estar em qualquer outro álbum da banda e aparecer no registro ao vivo da banda junto com "O Poeta Está Vivo" sem prejuízo algum.

Meu destaque absoluto fica para "Vai Ser Melhor Assim" por conta de um instrumento que salta aos ouvidos: os teclados do Mauricio Barros carregam o riff principal da música e sobrepõem as guitarras enquanto Suricato canta lindos versos de amor: "A vida é curta pra viver com quem só pensa em te foder". Clássico instantâneo.

Outro aspecto que me chamou bastante atenção é como as melodias são cativantes e as canções são simples e diretas. Nenhuma faixa do Viva é longa ou complexa como um épico do rock. Pelo contrário, são canções fáceis de cantar e dão aquela impressão de que seria muito simples pra qualquer um montar uma banda e aparecer com nove composições originais tão boas como essas (aviso: não é). 

Viva é um discaralhaço que faz o ouvinte voltar o álbum pra tocar desde o início logo que acaba e isso é algo cada vez mais raro (ainda mais pra uma banda veterana). O Barão Vermelho conseguiu não apenas estabelecer mais uma vez seu novo vocalista como provou que a chama ainda está acesa na banda. Imperdível.

Liberdade artística: músicas que falam de crime fazem apologia?

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Em 2018 tornou-se oficial o ciclo de indignação diária que aparentemente será a rotina das redes sociais durante alguns anos. A despeito do fato incontestável de que as pessoas fazem merda diariamente, a proporção da indignação virtual é que alcançou níveis mais altos que o comum, transformando alguns problemas, por vezes até banais, em "notícias" com destaque em portais de alcance nacional.

Um desses episódios envolveu a remoção de uma música do Spotify após a revolta de muita gente nas redes sociais. Aqui, o título de uma notícia publicada na época:

Clica na imagem pra ler a notícia toda, amigo leitor.


A obra em questão, Só Surubinha de Leve, do MC Diguinho cujos versos "taca bebida depois taca pika e abandona na rua" certamente não entrarão pra história da música popular brasileira, foi acusada naquela ocasião de fazer apologia ao crime de estupro.

Problemão, né? Pro autor da música e pra quem a publicou, sim - imagino que deva ter rendido problemas com processos e perda de receita - Agora, pra você, pra mim ou qualquer pessoa que decida ouvir ou não essa faixa, talvez tenha sido nada demais.

"Mas a música defende claramente o comportamento abusivo com mulheres!". Defende? Por via das dúvidas, façamos como sugere o mestre Manfredini Jr. em Só Por Hoje: vamos com calma.

Observe essa organizada e bem implementada tabela comparativa:

Só Surubinha de Leve -  MC Diguinho Conversa de Assassino Serial - Matanza
Pode vim sem dinheiro
Mais traz uma piranha
Pode vim sem dinheiro
Mais traz uma piranha
Brota e convoca as puta
Brota e convoca as puta
Mais tarde tem fervo
Hoje vai rolar suruba
Só surubinha de leve
Surubinha de leve com essas filha da puta
Taca bebida depois taca pika
E abandona na rua
Precisa arrumar um novo culpado
Se tudo acabar dando errado
Precisa de um novo suspeito
Porque foi bem longe de um crime prefeito
Fez bem em tê-la enterrado
Pena que foi descuidado
Deixou na pá impressões digitais

Porque ninguém mais acredita
Que foi só um crime comum
Mesmo que a investigação não saiba onde procurar
Eu já vi mais de um repórter andando pelo local
Já começaram a publicar que é um assassino serial















Duas obras, dois gêneros distintos e um elemento em comum: descrevem crimes. E caso o querido leitor nunca tinha reparado nas letras do Matanza anteriormente, talvez não tenha prestado atenção em muita discografia de bandas pesadas. Várias são as composições em que o personagem da letra está em posição oposta à lei, como no seguinte verso:
 "Finished with my woman 'cause she coudn't help me with my mind"  - Paranoid (1970)
No primeiro verso de Paranoid, Ozzy Osbourne canta como deu um fim à sua esposa por não ter ajuda alguma dela pra seus problemas de paranoia. Isso não quer dizer, no entanto, que Ozzy e o Black Sabbath sejam criminosos. Não que não tenham sido pegos em situações ilegais, mas compor letra de música ainda não configura crime. Por mais abjeta que uma letra possa ser, o famoso crime de apologia ao crime segundo o Art. 287 do código penal brasileiro, só ocorre na hipótese de alguém "Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime.". O Art. 286, anterior a ele é o que tipifica a incitação ao crime, e esse fato ocorrerá quando alguém "Incitar, publicamente, a prática de crime"Então, a incitação precisa estimular alguém a cometer crime e a apologia precisa elogiar um crime já cometido ou seu autor.

Caso fossemos decidir - e isso é um exercício hipotético, qualquer julgamento é responsabilidade do poder judiciário - se um autor de música cometeu qualquer um desses crimes contra a ordem pública, precisaríamos provar que um crime foi cometido antes e a canção celebra isso, ou depois, motivado pela obra. Complicado, não?

Pesquisando pra esse artigo, encontrei um texto excelente do Tassio Denker sobre os limites entre Liberdade de Expressão e apologia em que ele explicita o borrão que é a área cinza entre liberdade de expressão e crime, ressaltando que nenhuma liberdade é absoluta. Em se tratando de música ou qualquer obra artística, figuras de linguagem se aplicam, tornando praticamente impossível atribuir qualquer crime a uma obra. Claro, toda regra tem exceção.


Ironia: esse selo praticamente atesta a qualidade de um álbum de heavy metal.

Muito anterior a esse fato, em 1985 a música pesada foi alvo de grupos preocupados com a influência que ela exerceria nos jovens. O Parents Music Resource Center, foi um comitê formado nos Estados Unidos para aumentar o controle sobre músicas que, segundo eles, tratavam de violência, sexo e drogas. O comitê deu origem ao famoso selo que avisa os pais sobre o conteúdo das músicas, bastante comum nos álbuns de hard rock e heavy metal, não antes da líder do comitê,  Tipper Gore, ouvir a leitura de uma carta maravilhosa redigida pelo lendário Dee Snider, vocalista do Twisted Sisters à época. Ela podia ter ido dormir sem essa.



É preciso estar atento a casos como esses para poder distinguir a legítima aplicação das leis, das tentativas de cerceamento de liberdades e direitos garantidos, e de censura, pra que não voltemos ao tempo em que músicas precisavam de autorização antes de serem publicadas.

Ainda bem que os censores do governo eram meio lentinhos.

Pra mim, ficam duas conclusões: Casos de crimes reais são bem mais relevantes pra sociedade do que um caso de criação de obra ~artística~ e arte ruim é só arte ruim.


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